sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Os honoráveis assassinos - Uma parábola do nosso tempo

Outro dia a Globo exibiu um filme bastante interessante, que eu já tinha visto em vídeo. Se vocês não assistiram, recomendo. Chama-se O Último Jantar (The Last Supper), de 1995, dirigido por Stacy Title. A boa tradução, obviamente, seria “A Última Ceia”. O trocadilho é esse, já que, vocês verão, à sua moda, o filme trata de um ritual religioso. Ainda que venham a detestá-lo, vale por Cameron Diaz, que está uma belezoca (tá, essa dica é para os rapazes). Mas as moças têm lá bons estímulos ao intelecto, hehe.

Estudantes “liberais” (nos EUA, isso quer dizer “a esquerda possível”, já que, para sorte deles, a história os blindou contra certo tipo de delírio do atraso), todos com aspirações intelectuais e libertárias, moram juntos. São jovens, modernos, divertidos e se acham tolerantes e inteligentes. Um deles pega carona, sem saber, com um homicida perigoso. O cara acaba ficando para o jantar. É um gorila de extrema direita: xenófobo, militarista, antipacifista. O choque com os “liberais” é inevitável e chega ao confronto físico. Resumo: um dos “pacifistas” acaba por cravar-lhe uma faca nas costas.

A “turma do bem” havia cometido um assassinato. Ocorre que o brutamontes dizia coisas tão desprezíveis e era tão violento, que o ato se confundiu com legítima defesa. Passado o torpor, tem início a racionalização da morte:
- era um fascista; merecia viver?;
- vivo, ele tornaria o mundo melhor ou pior?;
- os “liberais” não vinham sendo muito moles e covardes? Não havia chegado a hora de agir?

Os “tolerantes” têm uma idéia: começam a chamar para jantar pessoas pelas quais nutrem um olímpico desprezo. Todas elas são submetidas a um “julgamento”. Ignorantes do risco que correm, são estimuladas, incitadas mesmo, a dizer o que pensam. Passam pelo festim diabólico, entre outros:
- o reverendo homofóbico que vê na aids um castigo de Deus;
- o machista misógino;
- a militante antiaborto;
- o sujeito que não acredita no efeito-estufa;
- um rapaz contrário ao direito dos sem-teto;
- a moça que detesta arte contemporânea…

A todos é dado um certo “direito de defesa”, embora não saibam que estão sendo julgados. A cada coisa chocante que dizem, segue uma pergunta para que digam algo ainda pior. “Reprovados”, são induzidos a tomar um vinho envenenado. O tribunal dos liberais, dos progressistas, dos modernos, é implacável. A fala das vítimas é não mais do que uma caricatura do que seriam as opiniões “conservadoras”.

O que Title faz é jogar na boca dos “condenados” aquilo que seus algozes gostariam de ouvir. Explico-me: eles querem eliminar seus adversários - assim, quanto mais idiotas e simplistas eles forem, melhor. A regra é a seguinte: reduza seu oponente a um borrão de tudo aquilo que você mais odeia, e haverá, então, um bom motivo para eliminá-lo. É a intolerância dos tolerantes.

Contei o fim do filme? Não! O desfecho é surpreendente. Aqueles pobres idiotas, que reivindicam o direito de dizer quem pode e quem não pode viver, não estavam preparados para uma abordagem um pouco mais requintada do mundo. E terão a chance de experimentá-la, o que os humilha intelectualmente. Não vou contar mais. Vejam.

No Brasil
Os esquerdistas no Brasil gostariam que seus adversários fossem tão tolos quanto são os dos assassinos de O Último Jantar. Se a Igreja Católica - a séria - combate a abordagem oficial sobre a camisinha, então ela é “responsável pela expansão da aids porque estimularia o sexo sem proteção”; se alguém acusa o Bolsa Família de ser a indústria da miséria, então é porque quer que os pobres morram de fome; se faz restrições de natureza ética ao aborto, então é porque despreza os direitos da mulher. Aí fica fácil: ao reduzir o Outro à estupidez, podem matar sem culpa.

E qual é a suposição intectualmente verossímil para que possam ser assassinos éticos? Os “direitistas” estariam defendendo “o passado”, enquanto eles, os “esquerdistas”, teriam a nos oferecer um futuro glorioso.
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Este texto foi publicado neste blog no dia 28 de janeiro de 2008. Impressionante, não é mesmo?

Por Reinaldo Azevedo